sábado, 11 de abril de 2009

A fonte

O largo da igreja estava vazio. A fonte estava cheia de água cristalina e límpida e tinha os sete peixes azuis, nem mais um, nem menos outro, sete, que regra geral, se alimentavam de alguns curiosos e desprevenidos gatos que durante a noite se iam observar na água espelhada . Os peixes só se alimentavam de noite, nunca dormiam, e ao contrário dos peixes normais, que têm alguns segundos de memória, estes não tinham memória alguma.
Almerindo aproximou-se, era já noite escura, a igreja não tinha relógio, mas ele já tinha jantado, por isso calculou serem por volta das 9h da noite. Viu-se na água da fonte, os peixes afastaram-se e ele pode ver os cabelos, que alinhou num gesto vagaroso, abriu os olhos, pestanejou, fechou, fez caretas, respirou fundo e com o coração acelerado, ansioso, dirigiu-se com passos vagarosos para casa dela.
Natalina tinha os olhos mais bonitos que alguém já tinha visto, e ao contrário dos olhos da videntes, que costumam ser verdes, os dela eram azuis, um azul profundo, umas vezes penetrante, outras cristalino. Como era cega, diziam-lhe que tinha cabelos castanhos, mas ela sabia que eram pretos, diziam-lhe que era magra, mas ela sabia que tinha formas arredondadas, ancas torneadas, diziam-lhe que tinha o rosto redondo, mas ela sabia que tinha o rosto oval, harmonioso, maçãs do rosto salientes e dentes que brilhavam no escuro, de tão brancos.
Nessa noite o coração dela batia mais rápido e forte, sabia, não por nenhum relógio, mas porque já tinha fome e se sentia um pouco fraca que deviam ser mais ou menos 9 horas da noite, e sentou-se, devagar, com os olhos a brilhar à espera. Ao colo dela veio sentar-se o Saramago, um gato que vivia lá em casa há muitos anos, e que não conhecera outra dona senão Natalina. Saramago forma um gato vadio que se alimentava dos restos e que quando ouvira falar dos peixes da fonte, veio por curiosidade, e ficou pela aldeia. Era o único gato que já tinha comido um peixe azul. Saramago não sabia, mas já era imortal.
Almerindo nunca tinha tocado em Natalina, mas ela sentia-o quase todas as noites, depois de se deitar, nua, na cama de lençois de linho branco que cheiravam a cânfora. Quando ela descansava a respiração, vinha Almerindo, as suas mãos no cabelo crespo dele, as mãos dele nos seus seios rijos, as pernas dele dentro das dela, as coxas dela que apertavam a cintura dele, o cheiro de ambos misturado, o sexo duro dele dentro dela, os gemidos de ambos...faziam amor enquanto o desejo durava, minutos ou horas.
Almerindo bateu à porta, ela levantou-se e abriu-a. Pelo cheiro soube logo quem era. Pegou num casaco de linha que já tinha pousado numa cadeira e sairam de casa. Não falaram. Dirigiram-se para a fonte, ele agasalhou-lhe o casaco nos ombros e guiou-a, como se ela própria não conhecesse o caminho, como se fosse cega, pensou ela e sorriu. Almerindo sentia-se um homem feliz, aquele era o melhor momento do dia, de todos os dias. Ele amava-a, mas como era imortal não se lembrava de alguma vez a ter sentido mais perto do que naqueles momentos. Uma vez chegados à fonte, tirou-lhe o casaco dos ombros, ela aproximou-se da água e viu-se. Achou-se bonita. Apetecia-lhe tocar na água, acariciar o seu reflexo que só via uma vez por dia. Começou a mergulhar o rosto na água, lentamente, os peixes começaram a aproximar-se. Mergulhou mais fundo, o frio da água, a fonte sem fundo...Os peixes finalmente saciaram a sua fome nos olhos dela. Almerindo assistia a tudo, e reparou que Saramago também estava empoleirado na fonte. Quando Natalina levantou a cabeça, cabelo preto reluzente e encharcado, tinha os olhos mais azuis que nunca e sentia-se agradavelmente saciada, jantada.
Almerindo deu-lhe a mão e conduziu-a de novo a casa. Nessa noite amaram-se a noite inteira.
De manhã quando amanheceu, a aldeia tinha o movimento habitual, a normalidade restituída, Almerindo era funcionário dos correios e aí passava os dias, num trabalho que gostava, Natalina bordava à mão e com a ajuda de Almerindo, vendia os seus trabalhos na Internet. Saramago passava os dias em aventuras com os peixes azuis da fonte, que durante o dia se transformavam em gatos. E assim foi, durante sete imortais anos.

Margarida S.

Sem comentários: