terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

As sabrinas de verniz preto


Naquele dia calcei as sabrinas de verniz preto. Sabia que ia andar muito e convinha-me ter calçado cómodo. De verniz preto porque, não é à toa que se calça algo de verniz preto. Para já é preciso ter o pé e a pena elegante, ou corre o risco de parecer um elefante de sandálias e porque é preciso segurança e auto confiança para o fazer. Só as mulheres conseguem compreender isto.

E não me enganei. Viajámos muito, percorremos léguas, milhas, anos luz de caminhos, de histórias, de acontecimentos. Vimos nascer e morrer uns quantos sóis, apareceram e desapareceram tantas luas, tanta gente se cruzou e descruzou connosco. Nem um único rosto fixámos, nada se moveu, o mundo deu uma volta inteira e tudo ficou inacreditávelmente no mesmo sítio.

Houve um momento em que vacilei, uma bolha no pé, parámos, resolveu-se a situação, fui amparada durante uns minutos, ou foram horas, perdi a noção do tempo, não sei. As sabrinas de verniz preto resistiam, sómente alguma poeira a ofuscá-las, mas o brilho não esmorceu.

Quantas vidas vivemos naquele dia, quantas pessoas matámos, quantos medos enterrámos, quantos fantasmas criámos?

Sei que começámos uma nova vida ali, naquela baía, ao sol posto. Uma nova vida como as antigas, cheia de risos, angústias e vicissitudes, mas nova para mim, nova para ti.

Tinhas os olhos verdes e um sorriso envergonhado. Eu calçava umas sabrinas de verniz preto. Lembras-te?


M.S

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